quarta-feira, 1 de setembro de 2010

"RETALHOS DE UM ALMOÇO"


TEXTO DE
Manoel Carlos


Alguns restaurantes têm as mesas tão próximas que fica impossível não ouvir o que se diz numa ou noutra, ao nosso redor. Eu e minha mulher estivemos num desses na semana passada. Na mesa vizinha duas mulheres conversavam, depois de almoçar e dividir uma cervejinha.

– Eu me lembro de quando era menina – falava a mais franzina – , do meu pai bebendo uma cerveja que dava gosto ver! Estalava a língua depois de cada gole, a espuma branca fazendo um bigodinho. Engraçadíssimo. Minha mãe dizia: "Você vai engordar!", e ele: "Vou ser um gordo feliz!".

– Você, hoje, está falando muito no passado – observou a esbelta.

– Será que estou ficando velha?

– Velha? Com 40 anos?

– Trinta e nove!

E riram gostosamente, o que me levou a sorrir.

– Você ouviu o que eu falei? – perguntou minha mulher.

– Claro – menti descaradamente.

Minha mulher continuou a falar sobre suas sessões de RPG enquanto eu continuei a ouvir a mesa ao lado.

A franzina continuava:

– Será que Freud explica?

– Freud não explica nada – replicou a de aparência mais esbelta. – Cheguei a essa conclusão depois de quatro anos de análise! Meu marido fez as contas: quase 300 000 reais eu deixei no divã do Amilcar!

Enquanto minha mulher atendia nosso filho Pedro ao celular, olhei as duas vizinhas de mesa. Eram bonitas e agora saboreavam a sobremesa. A franzina estava com a corda toda:

– Engraçado como as coisas mudam com o tempo... Quando eu era criança, ouvia sempre que comer muito era sinal de boa saúde. Eu tinha uma tia gorda, que era almoço e jantar à base de arroz, feijão, batata e carne.

E meu pai dizia: "Dá gosto ver a Adelaide comer".

– Hoje comer assim é uma fuga, um sinal de infelicidade, desgosto, sei lá!

– Minha tia, se fosse viva, ia estar fazendo análise sete vezes por semana!

– E levando o marido à falência!

E riam, devorando a torta de chocolate, que devia estar uma delícia!

– O Pedro inventou uma festa para hoje – falou minha mulher, desligando o celular.

– Ótimo – exclamei sem sentir.

– Ótimo como? Hoje é quinta, amanhã tem escola bem cedo. Nós combinamos que festa só na sexta e no sábado!

O garçom veio com os nossos pratos e a conversa ao lado continuou, com a franzina martelando o mesmo assunto:

– No colégio, as freiras diziam que a gula era um pecado mortal – falou a esbelta.

– Para mim é pecado porque engorda – disse a outra.

Pediram o café e a conta. Continuou a franzina:

– Meus professores viviam olhando para minhas pernas. Me subia um calor, nossa! Tinha um então... não era bonito – um pouco careca, óculos de intelectual... mas de um olhar penetrante, que me varria da cabeça aos pés...

– Sei como é. Tenho um vizinho que me olha assim: olhar de adaga.

– Que vizinho é esse, meu Deus? – cortou a franzina, ansiosa.

– Você está num fogo, hein?

– Eu me separei há três meses, pô! Jejum total!

– Um do 5º andar. Meu marido já olha atravessado para ele, mas eu juro que não tenho culpa, não incentivo, mas... Noutro dia subimos juntos no elevador. Só nós dois e ele não desgrudou os olhos de mim. Sabe que por um momento... olhe: só tenho coragem de contar isso para você. Por um momento eu tive gana de...

Justamente nesse pedaço, minha mulher cortou, tocando no meu braço:

– Você está me ouvindo?

– Estou, claro.

– Então por que não me responde!

– O quê?

– Comprou os ingressos para a Madeleine Peyroux?

– Comprei.

O celular da minha mulher tocou outra vez.

– Agora é a Júlia. Ah, esses nossos filhos não me largam!

Voltei a olhar as duas mulheres. A esbelta pagou a conta, levantaram-se e saíram. Do que será que ela teve gana?, pensei eu. Podia imaginar, mas não seria a mesma coisa, concordam? Quando saíamos do restaurante minha mulher comentou, meio emburrada:

– Hoje tive a sensação de que almocei sozinha!

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